15/09/2015
Des. Jacque T’Enrabau
Sócio-fundador
do IBCCRÉU
Desanimado
com a libertinagem penal que vige no Poder Judiciário brasileiro (que alguns
preferem chamar de “liberalismo penal” ou “garantismo penal”) eu já havia
desistido de escrever sobre as bobagens e teorias de gabinete que todos os dias
surgem neste cenário, mas, as recentes iniciativas me levaram a novamente propor
uma reflexão, especialmente indignado com as ideias nascidas dentro de alguma
sala com ar-condicionado no “País das Maravilhas” que é Brasília, por pessoas
que não conhecem minimamente a realidade do país.
As ideias
descabidas que ocorrem em Brasília, fruto de quem viveu a vida inteira em
condomínio nas grandes Cidades, brincando em playground, nunca pôs o pé no chão
de barro, não conhece a realidade do país, não sabe o que é o interior da
Amazônia, a vida sertaneja do nordeste, as escolas rurais do Pantanal, só
conhecendo a realidade das grandes Capitais levam a coisas absurdas.
Ou seja,
são os burocratas que vivem em outro mundo: o “País das Maravilhas de
Brasília”.
Me recordo
de uma delas: a ideia apresentada de inopino por um Ministro da Educação de
controlar a frequência escolar de todas as crianças do Brasil com cartão
magnético (confira-se a notícia de 2004: http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2004-09-24/tecnologia-de-controle-da-frequeencia-escolar-usara-cartao-magnetico-e-impressao-digital),
que afirmou que dali a poucos meses todas as escolas já teriam este controle e o
Ministro, em seu gabinete, poderia saber em tempo real quantas crianças estavam
em aula e quantas haviam faltado.
Ele só não
conseguiu responder ao repórter que o entrevistava como isto seria possível se
um número imenso de escolas no país – especialmente as rurais – não tinha sequer
luz elétrica. Além disto, naquela época, quase nenhuma escola tinha acesso à
internet.
Pois bem,
lá se vão onze anos e, que eu saiba, este sistema não foi implantado na maioria
das escolas. Melhor tivesse o Ministro prometido e cumprido que todas as escolas
teriam professores qualificados, material e merenda, já seria um grande
avanço.
Lembrei
desta passagem em razão da recente “modinha” nascida na cabeça de alguns
garantistas penais e comprada por algum morador do “País das Maravilhas” que
achou bonito o nome e resolveu implementar goela abaixo ao restante do país: a
audiência de custódia.
A impressão
que dá é que alguém acordou um dia e, entre levantar de seu apartamento
funcional custeado pelo povo e descolar-se em seu carro blindado com motorista
até o seu local de trabalho, teve a brilhante ideia de inventar esta audiência
que não está regulamentada na nossa lei que rege a matéria, o Código de Processo
Penal.
O argumento
principal é que o Pacto de San José da Costa Rica prevê a apresentação imediata
do réu a um Juiz e, como isto não é feito de forma pessoal e presencial no
Brasil (mas, com comunicação do flagrante por escrito), violaria o pacto.
Não entro
no mérito se deve ou não haver a audiência, o que discordo é a forma como está
sendo feita e a prioridade da sua implementação.
Primeiro, o
pacto já está vigente no Brasil desde 1992 (Decreto Presidencial n. 678/2002),
ou seja, há quase vinte e cinco anos: porque exigir a implementação agora? Será
este o tema mais importante do Direito Penal Brasileiro? Será que a sociedade
realmente está preocupada em que o preso seja levado em 24 horas à presença de
um Juiz, tomando tempo para uma audiência praticamente inútil, cuja comunicação
do flagrante sempre atendeu os interesses ou está mais preocupada que o Juiz use
seu tempo para julgar os milhares de processos que se acumulam em seus
gabinetes?
Será que a
sociedade prefere que a Polícia Militar tenha que deslocar uma ou mais viaturas,
vários policiais, gastar recursos públicos para levar quem acabou de cometer o
crime à presença do Juiz ou prefere toda esta estrutura na rua, patrulhando, e
combatendo a criminalidade?
É claro que
esta é a última norma de Direitos Humanos que falta para ser implementada no
Brasil, já que, no restante, partindo da Constituição Federal, todas as demais
foram implementadas e já são realidade, sendo certo que o salário-mínimo é
suficiente para o trabalhador “atender a suas necessidades vitais básicas e
às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, laezer, vestuário,
higiene, transporte e previdência social...” (art. 7º, IV, da CF), todos
temos o direito à saúde já garantido e de qualidade do SUS, além da escola
pública ser modelo de eficiência. Ou não é? Ainda falta algo para ser
implementado?
Aliás,
apenas para deixar registrado, o sistema prisional do país está um caos. É
mínimo o número de presos do semiaberto que cumpre pena em colônia penal como
deveria. Condenados por roubos, homicídios e até estupros são beneficiados com
um regime que, na prática, ninguém fiscaliza e estão livres para aterrorizar a
sociedade, dia a dia.
Além da
falta de prioridades nos gastos de tempo e dinheiro, o que admira ainda mais, é
a forma como está sendo implementada: Imposição do STF aos Tribunais de Justiça
que regulamentem a audiência por meio de portarias, violando absolutamente o
princípio da legalidade, uma vez que tal regulamentação dependeria de lei para
implementar.
Caso não
dependa de Lei, por favor senhores Ministros, coloquem na lista de
regulamentação própria pelo Judiciário com sua varinha mágica os temas ainda
pendentes de implementação no Brasil, como o direito à saúde, educação e
segurança.
Mas não é
só isso: admira a absoluta falta de desconhecimento da realidade brasileira.
Ora, como querer levar um réu, preso em uma comarca do interior da Amazônia –
que muitas vezes levam-se horas ou até dias de barco para chegar no local – à
presença do Juiz em 24 horas, quando não houver juiz na Comarca?
De onde
sairão os Policiais Militares e viaturas para fazer estas escoltas? Deixarão de
patrulhar as ruas?
Como o que
é ruim sempre pode piorar, os defensores desta audiência (dá até a impressão da
existência de representantes dos interesses dos bandidos infiltrados no
sistema), conseguiram colocar nas regulamentações já existentes – e também está
assim no projeto de lei que pretende regulamentar a matéria (PLS 554/11) – que
tudo o que o réu disser neste audiência não poderá ser usado no processo
penal.
Ou seja, o
réu é preso, confessa na Delegacia de Polícia, vem à presença do Juiz e do
Promotor de Justiça, acompanhado por seu advogado e afirma que confessou de
livre e espontânea vontade e que seus direitos foram respeitados. Daí, tudo isto
é lavrado e colocado lacrado no Inquérito Policial. Caso o réu venha na
audiência de instrução e diga que foi torturado e confessou em razão disto, não
poderá a sua declaração prestada antes servir para refutar esta tese já
conhecida de quem trabalha no dia a dia da Justiça.
Para que
não se tenha dúvida, esta é a redação do projeto de Lei (Art. 306, § 7º): “A
oitiva a que se refere o parágrafo anterior será registrada em autos apartados,
não poderá ser utilizada como meio de prova contra o depoente e versará,
exclusivamente, sobre a legalidade e a necessidade da prisão; a prevenção da
ocorrência de tortura ou de maus-tratos, e os direitos assegurados ao preso e ao
acusado.”.
Ora, se o
réu já está em frente a um Juiz, acompanhado de seu advogado, por qual motivo
não pode ser usado o que ele disse? O único motivo: porque nossas autoridades
não estão preocupadas em descobrir a verdade, mas apenas em proteger o
bandido.
O que é
pior: por mais uma vez, inverte-se a lógica: joga-se a suspeita contra os
agentes do estado (policiais) – que deveriam ter presunção de idoneidade até
prova em contrário – e dá-se mais peso à palavra daquele que está sendo acusado
de um crime.
Note-se o
paradoxo: se o réu, na audiência de custódia, alegar que foi torturado, isto
poderá e deverá ser usado contra os Policiais, para abrir uma investigação
contra eles. Mas, se, ao contrário, naquele momento alegar que não foi torturado
e futuramente na audiência de instrução, sustentar que houve tal tortura, o
primeiro depoimento não poderá ser usado pelos Policiais em sua defesa, já que,
isto poderia, no futuro, voltar-se contra o próprio réu, uma vez que tal fato
comprovaria o crime de denunciação caluniosa.
Não se está
aqui defendendo a tortura. Quem torturou é bandido também e deve ser punido.
Mas, o que não se pode aceitar é a lógica de sempre achar que o acusado é um
coitadinho que tem seus direitos violados pelo sistema. As distorções devem ser
firmemente combatidas, mas não tidas como regra.
Há dezenas
de outros argumentos para reconhecer que o momento e a forma de exigir esta
audiência são, no mínimo, inoportunos, mas, reconheçamos em última análise que
pelo menos há um acerto: o nome “Custódia”.
Pois bem,
como diz um famoso apresentador de televisão dos domingos: cunhado é bom só na
casa dos outros.
Há um
ditado popular: “todo cunhado deveria ser chamado ‘Custódio’, pois começa por
“Cu” e termina com “ódio”.
Nenhum nome
poderia ter sido mais apropriado.